20.5.18

Herança-lume


Eu tiro uma foto e não reconheço aquele rosto
exausto, exaurido, exato
as imperfeições, as marcas, as espinhas, as manchas, as olheiras
o sorriso forçado
a maquiagem escorre, faz meus óculos deslizarem rapidamente pelo meu nariz, sujam as minhas mãos
me incomoda, já não serve mais. Eu anseio por lavar, por tirar a tinta que já não esconde nada
A noite mal dormida, o mundo meio cinza, o quente dos pensamentos que passam pelo corpo, a raiva, o alívio, a liberdade, o incômodo, o furacão indomável


Fui cinzeiro por muito tempo, agora não. Apagar a chama, esfriar, resfriar
que o vento venha pra aumentar o fogaréu e não mais abrandar
eu quero o calor, eu sinto dentro de mim a vibração, a quentura no rosto
Posso sentir todas as minhas ancestrais fervilhando interiormente
eu deixo me tomar, derreter a máscara que nunca se encaixou muito bem
É isso que chamam de ser livre?

E eu quero ver
cada traço que eu carrego, que é pouco meu mais de quem veio antes
eu quero ver
um pouco de cada mulher que eu trago e libertar suas dores
Eu quero ver
tudo o que eu não quis antes. Dar a cara pra eu mesma bater
Eu quero ser
quem encara e não vê vergonha em sentir-se pegando fogo. Eu vou acolher o meu incêndio
vou ficar em brasa, em carne viva
sentir cada parte, cada célula ardendo
Queimando, borbulhando
Limpando, purificando

porque eu já consigo enxergar beleza nas vigas expostas do prédio em chamas e também nos escombros tostados
porque eu já me permito não domar a lume, eu quero ver mesmo é incender

Não vou mais me esconder
deixar que seja lá o que me domine e me guie por um caminho que eu não escolhi
não vou ser minha refém, minha vítima ou minha algoz
vou arcar com as consequências da trilha que eu desejar e voltar atrás se não mais
mas eu, somente eu tomarei a decisão
e não permitirei, nunca mais, me afastar do que me rege

Eu escolho honrar a minha história, a minha ancestralidade e
eu aceito a minha selva e liberto
a mim
a todas que vieram antes
de nós mesmas.


Eu serei a vela, representando e perdoando a todas nós, 
o vermelho intenso e brilhante
não mais deixarei que apaguem o nosso ardor
nunca mais apagarão o nosso ardor.

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