22.11.18

Minha história é sobre não ser a Barbie


Quando eu era criança, por volta dos cinco ou seis anos, eu queria ser a Barbie. Eu acreditava nisso de uma maneira tão genuína que era certo, na minha cabeça, que um dia eu teria os cabelos loiros com mechas laranjas que eu pintava num livro da boneca que a minha madrinha me deu.

Os olhos azuis, a pele clara, os fios lisos, a estatura ideal e a cintura mais fina que eu conseguia imaginar: era isso que eu queria. Só que eu exibia íris escuras, cachos castanhos, cor alguns tons acima, uma altura que me presentou com o apelido de "baixinha" por muitos anos na escola e um corpo que nem de longe remeteriam a perfeição que eu almejava. E lembro de muitas situações em que isso foi esfregado na minha cara como esponja de aço.

Poderia citar um momento da alfabetização. Minha melhor amiga tinha o cabelo super escorrido, tanto que era difícil até de prender. Ostentava uma franja no meio da testa que eu queria também, então cheguei em casa e cortei meu cabelo encaracolado no mesmo lugar, crente que ficaria exatamente igual e isso me rendeu meses de presilhas e encobrimentos. Ou relembrar a primeira série, quando fui ao colégio com meus cachos curtos e armados e escutei que "aquilo" (uma parte minha) era horrível, que eu era uma bruxa. Essa deve ser a história mais triste e marcante que tenho a época.

E aí vieram vários anos de madeixas presas e, logo que minha mãe permitiu, alisei. Horas no salão para o retoque, Chapinha, secador e nada de praia ou piscina pra não desgrenhar o que tava arrumado. Minha rotina durante uns 11 ou 12 anos.

Sempre que meu pai chegava no trabalho e me via "arrumando" os fios, perguntava se eu já tava brigando com a chapinha. "A culpa é sua de eu ter nascido com cabelo ruim", eu repeti isso inúmeras vezes pra ele, que vem de uma família com descendência negra forte.

Era muito natural pra mim falar isso. O mundo rejeitou o meus traços e eu acolhi essa negação de mim mesma. O cabelo era o símbolo maior disso, mas tinha tantas outras características: eu não gostava do meu nariz, nem das minhas pernas que se esparramavam na cadeira quando eu me sentava e nem de não ser magra como as minhas amigas do colégio. Eu era grosseria, eu não era feminina como elas, entende? Pelo menos era assim que eu sentia. Então, em todo o meu tempo escolar eu nunca ousei pensar falar com algum menino que eu gostasse. Era claro que ele jamais se interessaria por mim, com tantas meninas muito mais bonitas e femininas que eu. A escola era o lugar mais intimidador possível. Tanto que até hoje eu evito voltar lá.

Depois de um tempo, clareei o cabelo. Se não dava pra ser a Barbie naturalmente, que eu desse um jeitinho. Estraguei bastante os fios com descolorante, calor e químicas que faziam as narinas arderem. E a vida foi passando. Tive namorados, faculdade, choros e sorrisos, e, em algum momento, eu até entrei na academia. Mas alguma coisa ali não fazia sentido, não encaixava. Com o tempo, esse sentimento foi ficando cada vez mais forte, até chegar ao ponto de eu me olhar no espelho e não me reconhecer. Quem era aquela menina que me encarava com um olhar confuso?

"A gente pode enfeitar os exterior com vários adereços, mas a raiz sempre vai nascer do jeito que ela é", me disseram uma vez. Não exatamente dessa forma, mas uma semente foi plantada. E essa frase me serviu de tantas maneiras... decidi dar uma chance pro meu cabelo natural em 2015. São quase quatro anos de paixão e cuidado pelos cachos que ostento no topo da cabeça. Com isso, nasceu meu TCC sobre transição capilar. Nasceu empatia, nasceu o conhecimento de outras pessoas que passaram pelo mesmo e nasceram experiências incríveis. Renasceu o meu amor-próprio.

Nada chega a superfície antes de brotar raiz.

Não sei exatamente onde quero chegar com esse texto enorme que talvez eu nem leia de novo, talvez seja pra agradecer como tudo aconteceu. Apesar de sofrido, se o caminho não fosse esse, eu não teria aprendido a andar sozinha e a ler a bussola. Em 2018 eu passo/passei por uma nova transição, que não teria sido possível se a primeira não tivesse acontecido. Toda a força e a resiliência que adquiri durante esses fatos foram e são essenciais pro cumprimento da minha passagem, ainda mais revolucionária.

Se a Amanda de 2015 não é igual a desse ano, definitivamente a Amanda do início de 2018 não será a mesma que entrará no ano que vem. Tantos desafios foram aceitos, tantos véus caíram, tantas amarras se romperam ou afrouxaram, tantas luzes surgiram e tantas sombras foram iluminadas e acolhidas. Posso dizer que aprendi a ser eu e, pela primeira vez, a respeitar isso. Sigo no trabalho para firmar, limitar, expressar. O casulo se formou e estou no meu período de transformação.

Continuo com todas as características que as Deusas me concederam, só que não mais ser Barbie. No fundo, talvez, eu nunca tenha querido - só não tinha chegado tão fundo pra perceber. Não sou perfeita e ainda vejo defeitos nas minhas pernas meio pra dentro e nas olheiras que por tanto tempo entupi de maquiagem. Mas eu descobri algo muito mais incrível do que ser boneca: ser livre. E tudo bem os meus defeitos, eles são meus também. Tudo bem às vezes tolerá-los e às vezes não suportá-los. E abraçá-los.

Não quero mais a aparência, nem a feminilidade, nem o engessamento, nem o sorriso obrigado, nem a perfeição, nem ser o que esperam de mim, nem nada que não venha de dentro. Digo isso para me presentar com o veredito de que vou atrás da minha liberdade.

E aceito, porque eu quero muito mais do que isso.
Quero me dar a oportunidade de ser infinitamente mais.
Que venha mais um ano novo na minha história.

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